sábado, março 15, 2008

Portishead

olha eu brincando de fazer resenha musical, depois de quatro anos sem me meter a essas coisas:

*

Portishead
"Third"
(Universal, 2008)
nota 9


Onze anos. Onde você estava em 1997? Eu estava no segundo ano do colegial, tinha dez centímetros a menos de altura, morava numa cidade onde a principal diversão das pessoas é ficar bêbado. Enquanto isso, em Bristol, uma cidade inglesa onde a principal diversão dos locais também é encher a cara, o trio Portishead gravava seu disco homônimo, o segundo, que fez a banda ser a trilha sonora de referência para muita bebedeira, tristeza, sofrimento e lamúrias por todo o mundo. Definiram ali o som que se convencionou chamar de trip-hop, transformaram a dor em arte, fizeram tudo aquilo que você já está careca de ler e saber – e ainda fizeram shows consagradores ao lado de uma orquestra, em Nova Iorque, que viraram o obrigatório disco Roseland NYC Live, um ano depois.

 

Dali em diante, o Portishead se calou. Depois de tanto cantar sobre o fim, seria o fim da banda? Saíram por completo do noticiário, não entraram no Big Brother, nada. Em 2002, a cantora Beth Gibbons lançou um disco folk, "Out of season", e se apresentou no Brasil no TIM Festival de 2003 – quando disse que o novo disco do Portishead estava sendo gravado. Na época eu pensei "claro, e sai duas semanas depois do 'Chinese Democracy' e uma antes do My Bloody Valentine novo". Anos se passaram e nada da volta: o máximo eram os vocais de Beth em "Lonely carousel", no (brilhante) disco do português Rodrigo Leão. Em 2007, surpresa: o trio era anunciado como curador do festival All Tomorrow's Parties, em Londres, onde também se apresentaria. Um perfil no Myspace com posts enigmáticos, algumas outras datas confirmadas – incluindo um show agendado para o festival de Coachella – e eu me vi em dúvida: será que agora volta?

 

E, alguns dias atrás, a notícia: depois de onze anos, "Third", terceiro trabalho de estúdio do Portishead, seria lançado em abril. Antes disso, como em todo lançamento pós-"Kid A", ganhou a internet. Procurei-o em alguns programas e, antes de consegui-lo, ainda baixei um arquivo falso, com o disco de um DJ coreano. Se fosse qualquer outra banda, eu não teria tentado duas vezes, mas tem coisas que só quem me acompanhou em muita bebedeira, tristeza, sofrimento e lamúrias faz. Na segunda tentativa, o disco correto. E um aviso, em português do Brasil, logo de cara:

 

"Esteja alerta para a regra dos três. O que você dá retornará para você. Essa lição você tem que aprender".

 

É com essa frase, em bom português, que "Third" começa. Com uma sonoridade quebrada, outras batidas, um clima igualmente soturno mas que não é uma mera evolução do que a banda fez. E de repente a faixa de abertura acaba. Como se tivesse sido censurada. A propósito, ela se chama "Silence" – e assim o silêncio se faz.

 

Logo depois, em "Hunter", momentos de beleza ímpar: violão, moog e as batidas inconfundíveis. O disco vai ficando irresistível. Parece uma volta a um quarto escuro, depois de umas doses de vodca; mas é outro quarto, outra bebida (gim? uísque? ou, já que o disco abria com um vocal em português, CACHAÇA?). Em "Nylon Smile", logo em seguida, Beth Gibbons manda os versos mais devastadores desde "The past is a grotesque animal", do Of Montreal: "I don't know what I've done to deserve you / I don't know what I'd do without you". Texturas orientais emolduram sua voz, que parece um fio de nylon prestes a se romper. E o rasgo ("The rip") é com o passado, na quarta música: acreditem, o Portishead está fazendo rock and roll. Um clima tenso domina a paisagem, que mais parece uma perseguição policial em preto-e-branco, bastante acelerada. Mas a seguir, em "Plastic", tudo volta a andar devagar; Beth, como uma menina de coral, parece narrar os últimos momentos dos detetives em busca do assassino, escondido em um galpão industrial.

 

Já estamos na metade do disco, e "We carry on" tem um quê de Interpol, em sua malemolência: a voz de Beth Gibbons vem cheia de eco, acompanhada por sintetizadores que soam como sinais de alerta. Você consegue imaginar um alerta dançante? É por aí.  Ela diz não conseguir sobreviver ao tempo e aos passos, e que não consegue escolher por qual caminho seguir. Para nós, apenas um caminho existe: continuar ouvindo.

 

Está achando tudo indigesto e quer parar? O bandolim na abertura da curtinha "Deep water" é um convite ao relaxamento. Mas a paz logo é abalada por "Machine gun", cuja letra é, sem dúvida, uma metralhadora: ela se diz assustada e pede para que constatem que seu coração está envenenado, enquanto os sintetizadores e a bateria eletrônica transformam tudo em um metal industrial à moda alemã, sem as guitarras.

 

Depois vem a maior música do disco, "Small": sete minutos de Beth Gibbons apanhando de andróides replicantes; "Magic doors", até agora a melhor canção de "Third", parece uma canção pop estilo Antena 1 possuída pelo demônio, que vai brincando em um estúdio montado no inferno. E encerra com "Threads", uma aula de como fazer guitarras roubarem a cena.

 

No final das contas, "Third" traz a sensação de que o Portishead passou os últimos onze anos jogando uma única partida de War e ouvindo tudo o que foi lançado desde então ("Come to daddy" do Aphex Twin, Chemical Brothers fase "Surrender", Moby, Groove Armada, Four Tet, Interpol, The Streets, Kenneth Bager, Burial, Justice, "In Rainbows", do Radiohead). Ao final da partida, com a vitória dos exércitos brancos, a banda olhou para todos os discos que ouviu e apenas pensou: "vamos fazer melhor". E conseguiu. 

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