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coluna do João Pereira Coutinho, publicada na "Folha de São Paulo" da última terça:
Piccadilly Circus
Para H. L. (1965-2008)
Aconteceu nas vésperas de Natal. Eu deixei o colégio em Oxford, tomei um trem para Londres e cheguei na cidade pela hora do almoço. O meu vôo para Lisboa era ao final da tarde, e eu decidi, com a inevitável nostalgia da época, fazer umas compras finais. Entrei no Fortnum & Mason, um armazém junto a Piccadilly Circus, e escolhi: perfumes, chocolates, um lenço para a minha irmã. Depois pedi para embrulhar. Aguardei. E ela entrou. O cabelo era ruivo. Os olhos, claros e vivos, num rosto pequeno e limpo, sem traço de pintura nenhuma. Olhei, ela olhou. Demoradamente. Nos filmes, é fácil resolver o impasse: alguém se aproxima, alguém se apresenta. A trilha sonora costuma ajudar. Mas faltam roteiristas na vida real. E eu, preso ao balcão, aguardando o meu presente, não tinha uma só frase para oferecer.
Ela passeou pelo espaço. Sem pressa, sem interesse. Depois saiu por onde entrara, devolvendo o olhar. Com um sorriso. Devolvi também, disse à moça de serviço para esquecer o papel de embrulho e o pagamento com cartão de crédito. Espalhei umas notas pelo balcão, disse um "keep the change" ("fique com o troco", como dizem nos filmes), voei pela escadaria abaixo e saí para a rua. Piccadilly era um dilúvio de gente. Véspera de Natal, lembram? Caminhei até a esquina, procurando uma cabeça ruiva no meio da multidão. Encontrei várias. Não encontrei nenhuma. Cansado de procurar pelo quarteirão, sentei-me num banco do jardim de St. James, as malas pesando, um almoço de improviso num saco de papel. E frio, muito frio. Confirmei a hora do vôo e decidi que era hora de partir.
Sem entusiasmo. Sem ela.
O táxi parou. Entrei, murmurei "Heathrow", encostei a cabeça com um suspiro de rendição. Chovia, agora. Se não chovia, chove na minha memória. O carro começou a andar e, segundos depois, parou no primeiro semáforo. Nos filmes, esse é o momento das aparições: ele olha pela janela e encontra o que procurava. A vida não é um filme. Mas a vida imita os filmes. Então, eu olho pela janela e encontro o que procurava. Limpo o vidro com a manga do casaco. Confirmo. Confirma-se. O cabelo ruivo. Os olhos, claros e vivos, num rosto pequeno e limpo, sem traço de pintura nenhuma. E ela, só, sentada na mesa de um café.
O sinal abre, o carro prepara-se para continuar. O rapaz pede ao motorista para parar. O rapaz pede ao motorista para esperar. Sai do carro, aproxima-se da vitrine do café. Ele olha para ela. Sorri. Acena. Ela olha para ele. Sorri. Acena também. Ele entra no café. O que dizer? O que não dizer? Milhares de páginas lidas e escritas, e nenhuma frase para o salvar. Ele, um cronista? Não sejam ridículos.
Ele foi ridículo. "Eu a conheço?", perguntou, o supremo clichê. Arrependeu-se da pergunta, mas era tarde. Ela ria. Ele ria com ela. "Infelizmente, não creio", respondeu-lhe. Chamava-se Hannah. "Com dois agás", disse ela, desenhando o nome no tampo da mesa com a ponta do dedo. Estava de passagem por Londres. Como ele. Compras para a família. Como ele. Volta para casa no final da tarde. Como ele. Nenhum dos dois voltou para casa naquele dia. Sim, lembro-me de tudo. Ela também. Sentados no mesmo café, sete anos depois. De passagem. Sempre de passagem. Contamos histórias. Coisas feitas, coisas desfeitas. Alegrias. Tristezas. As pessoas que vieram. As pessoas que partiram. Fotografias dos filhos dela. "Esse é o mais novo", e aponta para um rosto de criança com o mesmo dedo com que desenhara o seu nome imaginário, numa outra vida. Eu limito-me ao comentário banal. Bonito. Parecido com a mãe. Parabéns. Mulher de sorte. E, por cada frase dita, o meu espanto cresce pela distância que existe entre o presente e o passado. Envelhecemos ambos. Mas a idade vale pouco quando é de estranheza que falamos. Dois estranhos.
A noite cai em Piccadilly. Véspera de Natal. Deixamos o café, caminhamos por entre compradores festivos e, num silêncio demasiado amargo para ser prolongado, ela pergunta, a medo: "Voltarei a ver-te? Ou só daqui a sete anos?" E ri como antigamente. Os mesmos olhos, claros e vivos, num rosto pequeno e limpo, sem traço de pintura nenhuma. Eu faço sinal para chamar um táxi, beijo-a no rosto e digo um "claro que sim" que não convence nenhum dos dois. Ela sorri. Eu entro no carro. Ela fica. O carro volta a andar. Não pára em nenhum sinal.
Etiquetas: bronze
1 Comments:
why does it always rain on me????
???
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