terça-feira, janeiro 26, 2010

nulla tenaci invia est via

a frase em latim que batiza esse post quer dizer "para os persistentes nenhum caminho é impossível". é o lema da Spyker, uma empresa holandesa que fabrica carros artesanalmente. pelo que sei, são cerca de cinquenta veículos por ano, todos feitos segundo algumas regras: as folhas de alumínio que formam a carroceria são moldadas à mão, o couro dos bancos é cortado à mão, os mínimos detalhes são possíveis de personalização. e o lema da empresa, em latim, vai gravado nas rodas do veículo. como é um carro artesanal e feito à moda antiga, a Spyker quer que eles sejam dirigidos à moda antiga: não há controle eletrônico de estabilidade, não há profusão de airbags e, salvo engano, não há nem direção hidráulica; o que tem, vá lá, são os freios ABS e o ar-condicionado - porque não ficaria bem ver rodas tão bonitas travando e você suando para tentar controlar o carro. mesmo assim, a preocupação com o luxo é tão grande que até virou um caso no MBA do Luxo na Faap.

mas "nulla tenaci invia est via" ganhou um novo significado hoje, quando o dono da Spyker, Victor Muller, anunciou que sua empresa adquiriu a Saab. a Saab é uma fabricante sueca de carros que pertencia à Saab Aero, essa que disputa a licitação da Força Aérea Brasileira com os caças Gripen. a divisão automotiva surgiu logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando a empresa percebeu que teria de fabricar outra coisa nos tempos de paz, ou não sobreviveria. dezesseis funcionários, todos suecos, foram encarregados de criar a Saab Automobile em 1946; curiosamente, 14 deles não tinham carteira de habilitação.

e você sabe como são os suecos: especialistas em filtrar o melhor da França (no desenho) e da Alemanha (na técnica), misturar os dois e colocar um toque especial escandinavo, ou ainda uma loucura qualquer. para desenhar os primeiros carros, chamaram um gênio de nome Sixten Sason, o maior desenhista industrial do país em sua época: todas as grandes indústrias da Suécia de então tiveram uma criação de Sason. bicicletas Monark (sim, elas são suecas), eletrodomésticos Electrolux, câmaras fotográficas Hasselblad... e a lista segue. Sason desenhou os carros da marca por quase vinte anos, até o fim de sua vida.

mesmo depois da morte de seu estilista, os veículos da Saab foram acrescentando uma loucura/inovação atrás da outra: foram os primeiros a ter cinto de segurança de série, os primeiros faróis com limpadores e lavadores, os primeiros com para-choques capazes de absorver impactos e serem reparáveis, os primeiros a terem motor turbo a serem produzidos em larga escala. e em todos eles, até hoje, você gira a chave entre os bancos do carro, e não na coluna de direção. por quê? porque sim, oras.

em 1990, provavelmente depois de seus diretores terem dado cabo de nove gramas de cocaína cada um, a General Motors achou que seria uma boa ideia adquirir a Saab Automobile e assim o fez; de lá para cá, encarregou-se de deixar os Saabs cada vez mais parecidos com os Opels, tirando o temperamento sueco e a capacidade de inovação da marca. dois anos atrás, surpreendida (ahã...) pela recessão e socorrida com mais de US$ 30 bilhões do governo dos EUA, a GM decidiu fechar algumas de suas marcas, Saab no meio.

durante doze meses, os fãs da marca tiveram de aguentar a ameaça. em junho do ano passado, o barão Christian von Koenigsegg, que é dono de uma marca de supercarros que leva seu sobrenome, anunciou a compra da Saab, e todos ficaram mais aliviados. mas diante de uma série de restrições dos cretinos da GM, ele deu para trás em novembro, e os americanos anunciaram que a marca seria encerrada.

só que eles não contavam com uma coisa: existem marcas com compradores, e existem marcas com devotos. não só nos carros, já que você vê gente doente por Apple, Coca-Cola, Louis Vuitton... e até uns indies com mania de Adidas. entre novembro e o início desse ano, os devotos da Saab organizaram diversas carreatas, compuseram músicas e até lançaram uma página dizendo que, se a GM matasse a marca sueca, nunca mais comprariam carros de outras marcas do grupo (Chevrolet, Cadillac, Opel etc). ao mesmo tempo, vários interessados em levar a Saab apareceram: o grupo de investimentos Merbanco, derrotado pela Koenigsegg; um ex-primeiro-ministro sueco, bancado por investidores locais; o Genii, fundo de Luxemburgo, em parceria com o Bernie Ecclestone, proprietário da Fórmula 1; e a Spyker, mencionada no começo do texto.

pois hoje a novela acabou, e a Spyker adquiriu a Saab. a marca não será fechada, e aos poucos se desvencilhará da GM, podendo fazer seus carros da maneira que quiserem, do início ao fim. nos primeiros cinco anos ainda serão Opels, mas depois a tendência é que sejam "apenas" Saabs, apenas a manifestação de individualidade da marca.

no Brasil, a fabricante sueca é pouco conhecida: pelo que sei, existem vinte e dois carros deles no país da mandioca. um lote de 20 Saabs 9000 1991/92, trazidos pela Chevrolet para testar a receptividade do consumidor brasileiro (que gosta de lixo, por isso não deu certo) e dois Saabs 900, da mesma época: um vermelho, conversível, foi exposto no Salão do Automóvel de 1990; um preto, cupê, também roda por aí.

e por que estou falando da Saab aqui? primeiro, porque gosto de carros, como se sabe. segundo, porque tenho minha fixação por produtos suecos, geralmente menos ostensivos que os alemães mas tão bons quanto eles. terceiro, porque adoro a Volvo, principal rival da Saab e que a Ford quer vender a um grupo chinês - o que é tão ruim quanto a morte.

mas também por um quarto motivo: gosto de fabricantes de carros em que os engenheiros mandam nos contadores, e vão temperando os carros com suas loucuras. deu muito certo antes de a GM entrar, e eu gostaria muito que desse certo agora, mais uma vez. e que, diferente de antes, a Saab entrasse no mercado brasileiro e criasse raízes por aqui. para mim, que adoro a qualidade de construção da Mercedes-Benz, seria interessante ver uma marca com padrões semelhantes, mas desconhecida, chegar por aqui. e eu poder ter um 9-3 liftback, azul-escuro, com interior em couro cinza-claro.

o negócio de hoje merece registro porque não é todo dia que um fabricante de carros é salvo; também não é todo dia em que o presidente de uma empresa liga para o dono do maior blog sobre os produtos da marca, um minuto depois de assinar o contrato e cinco antes de anunciar ao mundo, dizendo "a Saab foi vendida". e porque, se você não trabalha com paixão, não compensa.

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