quinta-feira, março 08, 2007

lullaby

um pouco de sorriso...

O homem que escreve cartas de amor - Um dia com o último redator público de cartas de Saigon


Fiona Ehlers

A principal agência de correios de Ho Chi Minh fica perto do Rio Saigon, na parte mais tranqüila da cidade, onde os arranha-céus ainda não furam as nuvens e nenhuma motocicleta cruza as ruas zoando como um enxame de abelhas. Fica na frente da catedral de Notre Dame, em um prédio colonial antigo de 1886. Parece com os mercados antigos de Paris, pintado em cor de pêssego, com ventiladores zumbindo entre colunas ornamentais e a luz solar entrando por uma clarabóia no telhado. É um lugar eterno - a mais bela agência de correio em toda a Ásia.

Duong Van Ngo, um homem forte de 77 anos, estaciona sua bicicleta à sombra dos plátanos, cujos troncos são pintados de branco como se usassem polainas. Ele saúda os vendedores de postais e atravessa os arcos com o relógio da estação. São oito horas, o início de seu dia de trabalho em uma manhã quente e úmida de fevereiro.

Ngo se senta na ponta de uma longa mesa de madeira, abaixo de um mural de Ho Chi Minh. Ele tira de sua mala dois dicionários e uma lista de códigos postais franceses. Depois, coloca uma fita vermelha em sua manga esquerda para ficar facilmente reconhecível e expõe o cartaz: "Informações e Assistência de Redação".

A primeira pessoa a procurar seu balcão é um homem do delta do Mekong. Ele traz uma carta endereçada a um empresário na Europa. Há um ano que ele trabalha como motorista para esse empresário, levando-o para refeições de negócios e reuniões. Ele pede por escrito se o europeu poderia conseguir um seguro saúde para ele e dar-lhe um adiantamento de US$ 200 (em torno de R$ 400). Ngo traduz a carta para o inglês. "Prezado senhor", escreve com sua caneta tinteiro, "poderia educadamente pedir, sinceramente". Ou seria melhor dizer "afetuosamente"? Não, isso é intimo demais. O homem lhe dá uma nota. Ngo coloca-a dentro do dicionário sem nem olhar.

Ngo é um mediador entre mundos - um escritor de cartas profissional do tipo que costumava existir antigamente. Ele escolhe cada palavra meticulosamente, formula as frases cautelosamente, burila o estilo da carta. Ele sabe como são importantes as palavras, e o mal que podem fazer. Ngo não apenas traduz, ele faz uma ponte entre as pessoas, aconselha-as e conforta-as, discretamente e com perfeita atenção à forma.

Ngo trabalha no correio desde os 17 anos. Ele diz que nunca perdeu um dia de trabalho, nem durante as guerras. Ele fala as línguas dos ex-ocupantes fluentemente até hoje; aprendeu francês na escola e inglês com os soldados americanos.

A segunda pessoa a procurá-lo é uma jovem de batom vermelho, luvas e um pequeno chapéu para protegê-la do sol. Ela dá a Ngo seu telefone celular Nokia e mostra algumas mensagens de texto. Estão escritas em francês e parecem românticas. Ngo traduz espontaneamente: "Quando vier visitá-la, você me mostrará o Vietnã e me ensinará sua língua, mal posso esperar". A mulher sorri envergonhada. Ela conheceu o francês por um site da Web. Amanhã vai voltar e compor sua resposta, com a ajuda de Ngo.

As funcionárias do correio chamam-no de o homem que escreve cartas de amor. Ele já provocou tantos casamentos, dizem, e é um poeta. Bem, diz Ngo, "talvez dois ou três casamentos. O amor em geral se esvai entre os continentes, com as duas línguas, duas culturas - você sabe. Não é fácil."

Ngo ouviu milhares dessas histórias. Algumas bonitas, outras trágicas. Ele procurou crianças de soldados americanos e parentes de cidadãos vietnamitas que escaparam de barco após a guerra. Ele testemunhou muito sofrimento. Ele não dá detalhes. Seus clientes pagam-no por seu silêncio.

Algumas vezes, ele mesmo recebe cartas. Os agradecimentos vêm de todo o mundo e são endereçados ao "Escritor de Cartas, Correio Central, Saigon". Ngo nunca recebe mensagens eletrônicas. Detesta computadores e telefones celulares. "As palavras que vêm de uma máquina não tem alma", diz ele, acrescentando que as pessoas que usam tais máquinas perderam toda educação e noção de estilo.

Durante o intervalo para o almoço, Ngo vai até a rua onde os vietnamitas que moram no exterior se sentam em cafés, usando grandes óculos escuros. Eles vieram para as celebrações do Ano Novo. Enquanto saboreiam seus cafés mocha, sistemas de sprinkler jogam vapor de água refrescante em seus rostos. Ngo pede sopa de macarrão em uma banca.

Turistas japoneses chegam durante a tarde e o fotografam como se fosse um fóssil em um museu. As funcionárias do correio grampeiam páginas de fax e conversam. No meio disso tudo, novos clientes esperam na mesa de Ngo. Eles lhe dão seus livros de endereços, assim como caixas para seus parentes no exterior. "Vitogo", diz uma mulher que trabalha no mercado e usa um chapéu de palha de arroz. "A rua é chamada Victor Hugo", diz ele virando os olhos brevemente, "como o famoso escritor." Ele escreve o endereço no documento de envio.

Ho Chi Minh, lá no mural, teria gostado do que ele faz -"conectar pessoas" por meio de sua caneta tinteiro? Ngo sorri. Política, diz ele, está fora de sua província. Ele conta que costumava ser observado pela polícia, porque era suspeito de trair segredos para os inimigos do Estado. Ainda bem, isso acabou, diz ele. Hoje, o Vietnã é global, e o mundo tornou-se um lugar complexo e imprevisível, diz ele. Isso também significa que há maior demanda hoje por seu trabalho do que antes.

Ngo é atualmente o último escritor da cidade antes conhecida como Saigon. O penúltimo, seu colega Lieng, morreu há 10 meses e não foi substituído. Ngo acha que o mundo poderia fazer mais uso de pessoas como Lieng e ele.

Infelizmente, diz ele, "ele simplesmente não quer nos pagar mais"