sexta-feira, abril 21, 2006

ficção científica
eu ainda me lembro daquele dia em 2008 em que a conheci. estava num hotel em Bruxelas, fazendo meu check-in, havia acabado de deitar fora do corpo meu trench-coat. chovia a cântaros lá fora, e não havia, nessas condições, muito para onde ir. aí os meus olhos se cruzaram com os dela - e o mundo pareceu pequeno demais. quente demais. doce demais. tudo de mais. a boca secou, a caneta caiu. a moça do balcão perguntou em inglês se estava tudo bem e eu, trouxa, respondi em português. uma falha de comunicação, logo depois de um grande acerto você-sabe-onde.

não viajei mais de oito mil quilômetros para me apaixonar. subi ao quarto pensando nisso e em tirar as meias, a barba, tomar um banho de imersão o mais quente possível e voltar a mim mesmo, sem perder tempo com paixonites de viagem. em dois dias teria de voltar a Frankfurt e de lá seguir viagem para Dubai, enfrentando o maior choque térmico da história da civilização ocidental. mas o choque, naquelas condições, era outro. anafilático, de me esmagar por dentro. tem mulheres pelas quais você deixa família, fortuna e reputação para trás. nunca duvide disso - especialmente se você souber que podem explorar suas fraquezas. havia passado por isso quatro anos atrás e, de alguma forma, aquilo ainda estava presente em mim.

são histórias que nunca acabam, já dizia uma banda aqui da Bélgica. você vai e volta, acumula milhas, perde malas, gasta solas visitando itinerários sugeridos, prova comidas... e não se desapaixona. ou pensa que desapaixona, quando acontece tudo de novo. e não acha ruim: ao contrário, acha que pode dar certo. passa um tempo se enganando. quantas histórias realmente terminam? comigo foram duas. duas noites de sono bem dormidas, duas xícaras de chocolate quente, duas mechas de cabelo afastadas para os lados enquanto o beijo na testa sela o adeus, duas páginas não só viradas como arrancadas do livro e queimadas em silêncio. porque barulho faz mal e só o silêncio é sexy.

então lá estava eu, numa cama que seria minha por quarenta horas, tirando aqueles panos molhados que envolviam meus pés e ligando pra minha mãe, só pra dizer que tava tudo bem, que vencera um aguaceiro e a barreira da língua. deveria dizer a ela que perdi para um olhar rápido, coisa de três segundos? melhor ficar quieto. tudo parecia como daquela vez em que acordei num hotel em Guarulhos e não sabia onde estava nem o que fazer, e só fui descobrir horas depois, com uma limusine à minha espera e um negócio a ser fechado. tudo bem, o taxímetro rodava e eu continuava a ser pago para chacoalhar as mãos de estranhos duas vezes e, na segunda delas, receber um cheque e uma carta de intenções. sabe quais são as minhas para com você? saber se você é a dona daqueles olhos do saguão, que me perseguem pelo quarto, me escalam as costas e me derrubam na cama, que, se me pertence por dois dias, parece que a ti pertenceu por toda a vida - tal qual parece que eu também.

as meias se foram, a barba está por um fio - ou melhor, três, e de aço. sentisse eu sede, teria toda a água da chuva bruxelense para me desfazer a secura da boca - mas a única sede que tenho agora é de saber quem você é, por quê diabos estava ali e se aceita casar-se comigo. aliás, antes que você me diga que eu me apaixonei por uma imagem sua que não existe de verdade, procure saber se você é tão diferente assim dessa suposta imagem - talvez você se conheça menos do que eu te sei, talvez o teu susto negue o meu impulso com medo do que vem pela frente. então levante-se, esqueça o momento de fraqueza e continue a me escalar: abra a porta do meu quarto e reivindique o que é seu. tente me convencer de sua ingenuidade até ficar com raiva e me dizer coisas que você não queria dizer, porquê não sente. aliás, você sente alguma coisa?

pare, respire, não precisa responder agora. a tempestade que já cai é da cor dos teus olhos castanhos e a vontade que tenho é de te abraçar, seja quem você imaginar que é. se nem você souber, adoraria que descobríssemos, ainda que custasse tempo, dinheiro e indecisão, ainda que me tirasse horas de sono recontando passos, vendo você com outros, puxando com força pra dentro de mim a fumaça dos cigarros que não sabia que fumava, abraçando travesseiros com os braços que deveriam estar em torno de você e de mais ninguém. agora abraço o chão: estou deitado no carpete, à espera do seu salto dez que me vai pisar e me negar antes de seguir por uma estrada que te vai pôr a dezenas de quilômetros de distância de um pedaço de si mesma, estirado no chão de um quarto de hotel em Bruxelas, protegido da chuva e ameaçado pelo teu olhar.